A Revolução das Crianças

A Revolução das Crianças

São urgentes os espaços ruidosos e o silêncio nas famílias. E que os pais reclamem para si o que exigem às crianças. Como o mimo. É urgente que nos reconciliem com as palavras infantis como: «ajuda-me», «tenho medo», ou «quero mais».


Depois das grandes revoluções que o império romano e o cristianismo trouxeram à Humanidade, mudando mentalidades e comportamentos, os portugueses terão criado a grande revolução do renascimento (que veio a encaminhar-nos para a revolução francesa e para o positivismo). Na verdade, os descobrimentos portugueses e o terramoto de Lisboa mudaram o mundo. Os primeiros, porque revelaram quanto o engenho humano consegue ultrapassar medos e demónios. O segundo porque deixou a descoberto a grande incongruência da justiça divina (dando espaço para que a justiça dos homens se substituísse à delegação papal na constituição do poder político e
Confluísse para a ideia de um Estado de Direito).

A exponencial bondade da técnica, no nosso quotidiano, a significativa democratização dos recursos económicos e do acesso ao conhecimento, no pós-guerra, e o contacto cada vez mais tardio com a morte e com a nossa pequenez tornaram a religiosidade distante e assustadora. E o ato de religar e de sintetizar o que se sabe com o que se desconhece foram tornando, no nosso tempo, a subjetividade humana distante, misteriosa e assustadora. Curiosamente, estamos a chegar a um tempo onde a lei do Homem passa por um exorbitante deslumbramento fugindo de todas as realidades que impliquem exaltação, dúvida, paixão, medo, fantasia ou sonho, enfim.

A hegemonia técnica na construção do pensamento parece encaminhar-nos para a ideia de que, desde que funcione, tudo pareça valer, levando a supor que o essencial do conhecimento passa por rentabilizar o que se conhece e não tanto a tomá-lo como
o pequeno piscar com que reconhecemos as pessoas com quem contamos para não soçobrarmos ao escuro.

Num mundo dominado pela técnica e pelas flutuações da economia, como podemos compreender a função das crianças na vida dos pais? Acredito que se desenha uma nova revolução. Movida pela subjetividade humana e pelos valores da relação.
E, nesse contexto, as crianças e a família serão, no futuro, ainda mais preponderantes. Não no sentido dos pais deprimidos – que tantos slogans não se cansam de acarinhar, atormentados por não darem tempo, em quantidade, aos seus fi lhos – que (em vez
de brincarem com eles) os empanturram de brinquedos, que se submetem todos os fins-de-semana ao programa social das crianças e que – de cada vez que devem dizer «não» – se sentem no dever de o sufragar, através de muitas alíneas, pelo «douto» assentimento dos mais pequenos.

Acredito que a revolução das crianças passa por nos percebermos, por dentro, à escala do universo, pequeninos, como elas. Aumentando o perímetro da nossa ignorância à medida que conhecemos. Percebendo que crescer significa separar e enxergando - como elas fazem quando brincam – que, de cada vez que nos confiamos, estamos em Deus (en-theos, de onde surge a palavra entusiasmo). Logo que nos comungamos, transformamos saber em sabedoria. E sempre que escutamos somos mais clarividentes, mais justos, mais bonitos e melhores. É comovente como, para elas, somos a sua fonte de vida, de sabedoria, de justiça e de futuro. E somos – numa só relação – a janela para todas as revoluções com que a humanidade pula e avança. É por isso que eu acredito que a revolução das crianças passa por fazermos com elas como elas fazem connosco. Sendo assim:

É urgente que não protejamos as crianças de todos os riscos. Apesar disso, é fundamental que sejam protegidas do maior de todos: a infância dolorosa dos seus pais. É urgente que os pais se reencontrem com a sua infância na dos filhos, porque as dificuldades na educação não passam pelo modo como eles não escutam as crianças mas pelo ruído, ensurdecedor, dos seus sofrimentos infantis nos seus gestos de pais.
São urgentes os espaços ruidosos e o silêncio nas famílias. E que os pais reclamem para si o que exigem às crianças. Como o mimo.

É urgente que nos reconciliemos com palavras infantis como: «ajuda-me», «tenho medo», ou «quero mais». E com práticas milenares como «a vista na ponta dos dedos» e «o espreguiçar» (do coração).

Só assim criaremos uma nova revolução. Das crianças! Movida pela subjetividade humana e pelos valores da relação. Para que, sempre que as escutamos, nos tornemos mais clarividentes, mais justos, mais bonitos e melhores. Fonte de vida, de sabedoria e de futuro.

 

http://www.paisefilhos.pt/index.php/opiniao/eduardo-sa/3886-a-revolucao-das-criancas

publicado por salinhadossonhos às 08:55 link do post | comentar | favorito